14.6.07

bala.nça

Entro para ver o fauno de Brecheret mas permaneço, atraído pelo frescor das árvores. O sol que permeia as copas me faz notar que a capa do livro que carrego é verde e não preta. La Tía Julia y El Escribidor me acompanha desde que li o prólogo e o trecho de Salvador Elizondo (El grafógrafo), o que já faz mais de dois anos.

Talvez, para ler, seja necessário o mesmo tempo que Mario Vargas Llosa conta, no prólogo, ter demorado para escrever, com as mesmas interrupções longas e revisitando o livro em momentos diferentes. Se assim for, tenho só mais um ano e meio para ler o resto do livro.

Com o livro verde em mãos, sento em uma balança dentro de um cercado de areia com outros brinquedos. A vontade de balançar é grande, mas a vergonha me impede. A balança (ou o fauno!) percebe a timidez e me derruba para trás, consigo segurar as correntes com a ponta dos dedos e pronto, estou balançando!

Balanço como uma criança, o corpo esticado e os cabelos raspando o chão, vendo tudo invertido, sem medo de cair e me sujar na areia, ou no pior dos casos quebrar o pescoço.

Um apito interrompe a aventura.

De longe a figura fardada acena me pede para descer e eu aceno de volta perguntando o motivo. Ele então resolve pacientemente contornar o cercado de areia para se aproximar, e explicar à criança frustrada:

- "são as normas do parque"

- "que normas?"

- "só crianças podem balançar!"

- "porquê?"

- "porque a corrente só suporta 40 Kg, mais que isso desgasta."

- "uhum"

8.2.07

la.go

Hoje, primeiro dia de um novo ano, percebo que tudo começou no lago. Sim, o mesmo lago de Ana, o tomamos emprestado no início e depois de algum tempo ele passou a ser nosso também. Aliás ele deve ser de muita gente sem que o saibamos, nós é que temos esta mania de julgar que tudo é exclusivo. Nossas visitas ao lago criaram em torno de nós uma esfera lúdica e intimista, e nela viviamos outro tempo, outra realidade. Conhecemos tudo o que o outro não era, e neste processo invertido permanecemos o quanto foi possível. Vivemos uma sintonia intensa e consciente de si mesma, tempo mágico, que me arrebatou de lugar nenhum para dentro dela. A amo por isso, e por todo o resto. O lago nunca secou e sempre esteve vivo, as visitas é que diminuíram. Talvez tenha ocorrido o mesmo que se dá quando caímos nos encantos do perfume das damas da noite, e maravilhados aproximamos o nariz, preparamos o peito, para então absorver a maior quantidade possível do perfume encantador desta flor. Porém, muito pouco ou nada se capta além do ar inodoro, é como se as pequenas flores, conscientes de nossa gula por seu delicado perfume, sugassem de volta a seus ramos toda a fragrância antes exalada, impedindo o deleite de nossos narizes mal educados. Ser algum tem o direito de encher o peito com tão delicado perfume, este deve ser apreciado com tempo, sem pressa, com respeito, paciência e em pequenas doses. Erramos, ao estufar o peito e inspirar com força o ar presente na bolha que nos isolava do mundo, além de diminuí-la e trazer o mundo para mais perto, a decepção de não ser capaz de sentir todo o perfume do entardecer no lago, ameaçava estourar esta bolha, frágil como qualquer outra, feita de água e sabão. O lugar comum: “eterno enquanto dure”, hoje, para mim, assume nova forma, afastando-se da idéia de incerteza pela qual qualquer relação é permeada, uma vez que o futuro permanece alheio mesmo ao maior de nossos desejos, e aproxima-se da verdadeira beleza do amor, através da simples possibilidade de a eternidade caber em algo finito.

ma.tur.idade

Esta que deve ser uma das últimas frescas brisas deste verão, chega acompanhada da realidade penetrante que me indispõe para qualquer coisa, apesar da tarde ensolarada.
Sinto-me mais forte, é verdade, mas a que preço?
Anseio por uma maturidade que nunca chega e tenho dúvidas sobre sua vinda
A vejo refletida por ai, mas não sei se alguém realmente a possui, talvez simplesmente habite os seres por pequenos períodos, devolvendo-os depois a amarga e constante aflição de ter que teimar contra a vida.

3.10.06

limi.te

Graças a limitação causada pelo limite das nossas mentes limitadas, podemos criar.

ou.tros

Apesar de não acreditar em regresso evolutivo, admito que experimentando certas situações no convívio com outros humanos, tenho a falsa impressão de que estamos regredindo.
Muito me assusta a percepção de que somos todos indivíduos, com diferentes idéias, costumes, preferências, porém, todos com a mesma postura: imparcialidade.
A individualidade e o respeito às diferenças estão em voga e permeiam toda a estrutura social, tanto que o mercado também já interage com estes temas, embora porcamente, como ocorre com tudo em que toca. Na cultura atual, busca-se encontrar o próprio espaço, a própria forma de diferenciar-se e conquistar respeito. Assim sendo, o caminho padrão percorrido está focado no eu, e isso não só é aceito como é visto com bons olhos.
Há uma imersão no comportamento de atenção exclusiva às necessidades próprias e individuais, na realização de desejos imediatos e fugazes, na despreocupação com o conteúdo. Ironicamente, apesar da crescente e fútil preocupação em parecer, diminui proporcionalmente a preocupação e o interesse pela forma de representação do eu, do que se é de fato – para si e para os outros.
Nos distanciamos do outro (do externo), e perseguimos a diferenciação própria, esperando que estes outros entendam, respeitem, aceitem, tolerem, esta que é a única forma encontrada de creditar algum valor ao eu, que no mínimo, recebe atenção por ser diferente, independentemente do valor desta diferença.
Ocupados com a criação de nossa diferenciação, não nos preocupamos em entender, respeitar e aceitar a diferença dos outros. Exigimos o que não somos capazes de oferecer.

28.9.06

Eugène Delacroix

Tenho dois, três, quatro amigos: pois bem! Vejo-me obrigado a ser um homem diferente com cada um deles, ou antes, a mostrar, para cada um, a face que ele compreende. É uma das maiores misérias não poder jamais ser conhecido e sentido por inteiro, por um mesmo homem; e quando penso nisso, creio que está aí o soberano ferimento da vida: essa solidão inevitável à qual o coração está condenado.
Trecho do Diário de Delacroix.

20.9.06

in.fin.it.o

Chegando em casa ontem à noite, após uma bela aula sobre a morte, avistei algo que me transportou imediatamente à infância. Não sei se não utilizam mais este tipo de coisa ou se eu que parei de repará-las!
Antes, quando criança, adorava aqueles canhões de luz que dançavam no céu, normalmente colocados na entrada de alguma festa. Costumava passar longos minutos observando e tentando descobrir se as luzes simplesmente giravam pelo céu, ou se havia um padrão para os movimentos, e assim, tentava prever o caminho que fariam, além de, como uma autêntica criança, formular inúmeros porquês...
Porque eu vejo a bola do fim do raio de luz se o mundo não tem teto?
Será que a luz atravessa as nuvens e continua do outro lado?
E se a luz acertar um avião, assusta os passageiros?
Engraçado é que sempre associava esses canhões de luz – também usados para chamar o batman – à festas enormes, pois na minha percepção infantil eram caríssimos, uma vez que a luz não vinha de lâmpadas comuns, mas na verdade eram raios laser – dos que não machucam nem destroem nada – que produziam esses fachos luminosos e iam até o infinito.
Esta sem dúvida era a parte que mais me interessava: ir até o infinito.
Dormi pensando nisso após ter visto as luzes, uma série de vezes. Com base nas respostas que recebia às perguntas sobre o laser, e nas aulas de ciências, tentava imaginar até onde realmente estes raios alcançavam...
...bom, se passa pela atmosfera, consegue ir bem longe, já que o espaço é vazio, e, a não ser que o raio bata bem de frente com um planeta, ele segue numa boa, afinal acho que a luz do laser não vai gastando ou enfraquecendo só porque está indo mais longe.. mas será que alguém, em algum destes planetas pelo qual o raio de luz passa, consegue ver ele passar? se consegue, não deve entender nada!

6.9.06

borr.acharia

A frente da borracharia deve ter mais ou menos onze metros, com uns dois e meio de profundidade. As telhas de amianto sobre a estrutura de ripas cobrem os pneus que, empilhados, escondem as paredes.
O atendimento é ali, meio na borracharia, meio na calçada, o que complica um pouco o trânsito quando tem fila de espera.
A borracharia está lá há anos, eu não conhecia o bairro, mas conheço quem conhece, e estes dizem que sempre esteve lá, do mesmo jeito que é hoje. O Alemão, da borracharia do Alemão, sempre ocupado, atendendo cliente ou no seu projeto de reconstrução do que era uma Brasília. Sempre há uma visita de algum familiar, irmã, sobrinhos, não sei se é casado.
Certa vez, levei na borracharia um pneu de carro que estourei pelo lado ao bater na guia, ele arrumou rapidinho e a um preço justo, de acordo com sua fama.
No domingo passado, com o sol que abriu, criei coragem e peguei as duas velhas bicicletas para dar uma volta com a Pri. Os pneus vazios, seriam cheios no posto na frente de casa, se não estivesse fechado. Foi passando em frente a borracharia, que o Alemão se ofereceu para enchê-los. Parou o que estava fazendo e encheu os quatro pneus, comentando o carinho que tem por bicicletas, por ser o seu principal transporte. Percebeu a ferrugem nas correntes e foi buscar um balde de graxa para azeitá-las.
Voltou aos seus clientes, desaparecendo entre os pneus sem nem pensar em qualquer remuneração pelo favor com as bicicletas.
Mais do que serviço rápido e preço justo, o Alemão sobrevive por sua beleza.
Não é expansivo, não é tagarela e nem pretende ser comediante, como muitos dos que atendem clientes no negócio próprio, mas transmite através do olhar, da forma como te trata feito um velho conhecido, a verdade sobre a vida. Não sei que verdade é essa, mas sei que ele a possui, e derrama aos poucos em quem o conhece.
Tomara que este bairro nunca seja inteiramente asfaltado, que os buracos e os pregos, continuem espalhados pelas ruas.

25.8.06

Kierkegaard

Kierkegaard engajou-se nesse exercício extremamente difícil e incrivelmente sutil por uma razão, e só por uma: ser capaz, finalmente, de concluir com autoridade como uma pessoa seria se não mentisse. Kierkegaard quis mostrar as múltiplas maneiras pelas quais a vida entrava e malogra quando o homem se recusa a ver a realidade de sua condição. Ou, na melhor hipótese, que criatura indecorosa e patética o homem pode ser quando imagina que, vivendo só para si, está concretizando sua natureza.
Kierkegaard não tinha uma explicação simples sobre o que a saúde é. Mas sabia o que ela não era: não era o ajustamento normal – tudo menos isso, conforme teve tamanho trabalho analítico para nos evidenciar. Ser um homem cultural normal é, para Kierkegaard, estar doente – quer se saiba disso ou não: “há uma coisa como saúde fictícia”. Nietzsche posteriormente teve a mesma idéia: “Haverá talvez – uma pergunta para os psiquiatras – neuroses de saúde?” Mas Kierkegaard não só formulou a pergunta como também a respondeu. Se saúde não é normalidade cultural, então refere-se a outra coisa, deve indicar algo além da situação comum do homem, de suas idéias habituais. Saúde mental, em suma, não é típica, mas típica-ideal. É algo muito além do homem, algo a ser conseguido, algo pelo que lutar, algo que conduz o homem para além de si mesmo. A pessoa sadia, o indivíduo verdadeiro, a alma que percebeu a si mesma, o homem real, é aquele que transcendeu a si próprio.
Como alguém transcende a si mesmo, como se desvenda à nova possibilidade? Dando-se conta da verdade de sua situação, fazendo dissipar-se a mentira de seu caráter, soltando seu espírito da prisão condicionada. O inimigo, para Kierkegaard como para Freud, é o complexo de Édipo. A criança construiu estratégias e técnicas para manter sua auto-estima face ao terror de sua situação. Estas técnicas convertem-se em um armadura que conserva a pessoa presa. As próprias defesas de que ela agora precisa para se movimentar com confiança em si mesma e auto-estima tornaram-se uma armadilha para a vida inteira. A fim de transcender-se ela tem de derrubar o que for preciso para viver. Como Lear, ela tem de lançar fora todos os empréstimos culturais e enfrentar nua a tempestade da vida. Kierkegaard não alimentava ilusões a respeito do anseio do homem pela liberdade. Sabia como as pessoas se sentiam acomodadas na prisão de suas defesas de caráter. Como muitos presos, sentem-se confortáveis em suas rotinas limitadas e protegidas, e a idéia de liberdade condicional no amplo mundo de probabilidades, acidentes e escolha as aterroriza. Só temos de relancear novamente a confissão de Kierkegaard na epígrafe deste capítulo para ver o porquê.
[Toda a ordem das coisas enche-me com um sentimento de angústia, desde o simples mosquito até os mistérios da encarnação; tudo é inteiramente ininteligível, e particularmente minha própria pessoa. Grande e sem limites é minha tristeza. Ninguém a conhece, exceto Deus no Céu, e Ele não pode ter pena. – SÖREN KIERKEGAARD]
Na prisão de seu próprio caráter, pode-se fingir e achar que se é alguém, que o mundo é controlável, que há uma razão para a vida, uma justificativa pronta para a ação de cada um de nós. Viver automática e displicentemente é estar garantido pelo menos de um quinhão mínimo das grandiloqüências culturais programadas – daquilo a que poderíamos denominar heroísmo da prisão: a presunção dos que estão por dentro e que sabem.
O tormento de Kierkegaard foi resultado direto de ver o mundo como realmente é com relação à sua situação como criatura. A prisão do seu próprio caráter é esmeradamente construída de sorte a negar uma única coisa apenas: a condição animal de cada um. Isto é o terror. Uma vez que alguém admite ser uma criatura que defeca, está-se convidando o oceano primevo de angústia animal para nos inundar. Mas, é mais do que angústia animal: é igualmente angústia do homem, aquela que decorre do paradoxo humano de ser o homem um animal consciente de sua limitação animal. A angústia é resultante da percepção da verdade quanto à própria situação de cada um. O que quer dizer um animal auto-consciente? A idéia é ridícula, senão monstruosa. Quer dizer saber-se que o homem é comida para os vermes. Este é o terror: ter emergido do nada, ter um nome, consciência do próprio eu, sentimentos íntimos profundos, um cruciante anelo interior pela vida e pela auto-expressão e, apesar de tudo isso, morrer. Parece uma burla, motivo pelo qual um tipo de homem cultural se rebela ostensivamente contra a idéia de Deus. Que espécie de divindade criaria tão complexa e extravagante comida para vermes? Divindades cínicas, diziam os gregos, que usam os tormentos do homem para seu divertimento próprio.
Agora, porém, Kierkegaard parece ter-nos conduzido a um impasse, uma situação impossível. Ele nos falou que, ao percebermos a verdade acerca de nossa situação, somos capazes de transcender a nós mesmos. E, por outro lado, diz-nos que a verdade de nossa condição é nossa, completa e abjeta animalidade, que parece nos empurrar mais para baixo ainda na escala da auto-realização, mais longe da possibilidade de autotranscendência. Esta é, todavia, uma contradição meramente aparente. A torrente de angústia não é o fim para o homem. Ela é, pelo contrário, uma escola que dota o homem com a educação definitiva, a maturidade final. É uma mestra melhor do que a realidade, diz Kierkegaard, porque esta pode ser enganada, distorcida e refreada pelos truques da percepção e da repressão culturais. Mas não se pode mentir para a angústia. Uma vez que a enfrentemos, ela revela a verdade de nossa situação, e só vendo tal verdade pode-se abrir para nós uma nova possibilidade.
Quem é educado pelo pavor [angústia] é educado pela possibilidade... Quando uma tal pessoa, por conseguinte, sai da escola da possibilidade, e conhece mais perfeitamente do que uma criança o alfabeto, de modo a não exigir da vida absolutamente nada, e sabe que o terror, perdição, aniquilamento moram ao lado de todo homem, e aprendeu a lição útil de que todo pavor que alarma pode, no instante seguinte, tornar-se um fato, então interpretará a realidade diversamente...
Nada de enganos quanto a isto: o currículo na escola da angústia é a desaprendizagem da repressão, de tudo o que a criança se ensinou a negar-se de modo a poder se movimentar com um mínimo de serenidade animal. Kierkegaard, assim, coloca-se diretamente na tradição agostiniano-luterana. Educação, para o homem, significa enfrentar sua impotência natural e morte. Como Lutero insistiu conosco: “Eu digo morra, i. e. prove o gosto da morte como se ela estivesse presente.” Só se você provar a morte com os lábios de seu corpo vivo é que poderá emocionalmente saber que você é um animal que morrerá.
O que Kierkegaard está dizendo, em outras palavras, é que a escola da angústia leva à possibilidade só pelo fato de destruir a mentira vital do caráter. Parece o máximo em autofrustração, a única coisa que não se deveria fazer, pois então não lhe restará verdadeiramente nada. Mas, fique tranqüilo, afirma Kierkegaard, “a direção é bastante normal... o eu deve ser rompido a fim de se converter em eu...” William James resumiu belamente esta tradição luterana, nas seguintes palavras:
Esta é a salvação por meio do autodesespero, o morrer para nascer verdadeiramente da teologia luterana, a passagem ao nada de que Jacob Behmen escreve. Para aí chegar, geralmente cumpre passar por um ponto crítico, uma esquina a virar dentro de si próprio. Algo tem de ceder, uma dureza inata tem de quebrar e liquefazer-se...
Uma vez mais esta é a destruição da armadura emocional do caráter de Lear, dos zen-budistas, da moderna psicoterapia, e, de fato, dos homens que se compreenderam em qualquer época. Aquele grande espírito, Ortega, deu-nos uma expressão particularmente pujante disso. Suas afirmações são quase exatamente as de Kierkegaard:
O homem de mente desimpedida é aquele que se livra daquelas idéias
fantásticas [a mentira caracterológica acerca da realidade] e fita a vida no rosto, percebe que tudo nela é problemático e sente-se perdido. E esta é a singela verdade – viver é sentir-se perdido – aquele que aceita isso já começou a encontrar-se, a colocar-se em terreno firme. Instintivamente, como fazem os náufragos, olhará em torno à busca de algo a que se agarrar, e esse olhar trágico, implacável, absolutamente sincero, pois se trata de sua salvação, o fará pôr ordem no caos de sua vida. Estas são as únicas idéias genuínas, as dos náufragos. Tudo o mais é retórica, pose, farsa. Quem não se sente realmente perdido não tem escapatória; quer dizer, nunca se encontrará, nunca se defrontará com sua própria realidade.
E assim se chega à nova possibilidade, à nova realidade, pela destruição do eu ao se fazer face à angústia do terror da existência. O self tem de ser destruído, reduzido a nada, a fim de ter início a transcendência de si próprio. Então, o self pode começar a relacionar-se com poderes além de si mesmo. Ele tem de debater-se em sua finitude, tem de morrer para interrogar essa finitude e poder ver para além dela. Para onde? Responde Kierkegaard: para a infinitude, para a transcendência absoluta, para o Poder Final da Criação que fez as criaturas finitas. Nossa moderna interpretação da psicodinâmica confirma ser esta progressão bastante lógica: se você admite ser um animal, conseguiu uma coisa fundamental: demoliu todos os seus elos ou apoios de força inconscientes. Cada criança firma-se em algum poder que a transcende. Geralmente é uma combinação de seus pais, seu grupo social e os símbolos de sua sociedade e nação. Esta é a trama irracional de apoio que lhe permite acreditar em si própria, enquanto funciona na segurança automática de poderes delegados. Ela, está claro, não admite para si mesma que vive com forças tomadas de empréstimo, pois isto a levaria a duvidar de sua própria ação segura, daquela mesma confiança de que necessita. Ela negou sua animalidade exatamente por imaginar que dispõe de poder seguro, e este poder seguro foi obtido apoiando-se inconscientemente nas pessoas e coisas de sua sociedade. Uma vez que você revele essa fraqueza e vacuidade básicas da pessoa, sua incapacidade, então você é obrigado a reexaminar todo o problema das ligações de poder. Você tem de pensar em refazê-las em uma fonte real de poder criativo e gerador. É nesta altura que uma pessoa pode começar a posicionar sua condição de criatura diante de um Criador que é a Causa Primeira de todas as coisas criadas, não meramente os criadores de segunda mão, intermediários, da sociedade, os pais e a panóplia de heróis culturais. Estes são os pais sociais e culturais que, por sua vez, foram causados, que por sua vez, estão enleados em uma teia de poderes de outrem.
Uma vez que a pessoa se ponha a examinar seu relacionamento com o Poder Definitivo, com a infinitude, e a reformular seus vínculos desligando-os dos que a rodeiam para ligá-los a esse Poder Definitivo, ela se franqueia o horizonte da possibilidade ilimitada, da verdadeira liberdade. Esta é a mensagem de Kierkegaard, a culminação de todo o seu raciocínio a respeito dos becos sem saída do caráter, o ideal de saúde, a escola da angústia, a natureza da verdadeira possibilidade e liberdade. Passa-se por tudo isso para chegar-se à fé de que a própria condição de criatura tem certo significado para um Criador; que a despeito da verdadeira insignificância, fraqueza, morte de cada um, sua existência tem um certo sentido definitivo porque existe dentro de um projeto eterno e infinito das coisas produzidas e mantidas dentro de determinado modelo por uma força criadora. Repetidamente, em seus trabalhos, Kierkegaard volta à fórmula básica da fé: a gente é uma criatura que nada pode fazer, mas existe diante de um Deus vivo para quem tudo é possível.
Toda sua argumentação agora torna-se clara como água, segundo a qual a chave da abóbada da fé coroa a estrutura. Podemos entender por que a angústia “é a possibilidade de liberdade”, porque a angústia derruba “todas as metas finitas”, e assim “o homem que é educado pela possibilidade é educado de acordo com sua infinitude.” A possibilidade a nada conduz se não conduzir à fé. Ela é uma etapa intermediária entre o condicionamento cultural, a mentira do caráter e a abertura da infinitude com a qual a pessoa pode relacionar-se por meio da fé. Mas sem o salto para a fé o novo sentimento de desamparo por ter abandonado a armadura do próprio caráter infunde puro terror. Isso significa que se vive desprotegido pela couraça, exposto à sua solidão e desamparo, a angústia constante. Nas palavras de Kierkegaard:
Agora o pavor da possibilidade conserva-o como sua presa, até poder entregá-lo a salvo nas mãos da fé. Em nenhum outro lugar encontrará ele repouso... ele, que atravessou o currículo do infortúnio oferecido pela possibilidade, perde tudo, absolutamente tudo, de forma que ninguém o perdeu na realidade. Se nesta situação ele não se comporta falsamente face à possibilidade, se não tenta falar desviando-se do pavor que o salvaria, então receberá tudo de volta novamente, como na realidade ninguém jamais conseguiu mesmo que tenha recebido dez vezes mais, pois o aluno da possibilidade recebeu a infinitude...
Se colocarmos toda esta progressão em função de nosso exame das possibilidades de heroísmo, o resultado será o seguinte: o homem irrompe através dos limites do heroísmo meramente cultural; destrói a mentira do caráter que o fazia portar-se como herói no plano social quotidiano das coisas; e, ao fazê-lo, ele se abre para o infinito, para a possibilidade de heroísmo cósmico, para o próprio serviço de Deus. Sua vida, portanto, adquire valor definitivo em vez de valor simplesmente social e cultural, histórico. Ele liga seu eu interior secreto, seu talento autêntico, seus mais profundos sentimentos de originalidade, seu anelo íntimo por um significado absoluto ao próprio substrato da criação. Nas ruínas do eu cultural demolido permanece o mistério do eu particular, invisível, interior, que anelava por significado definitivo, por heroísmo cósmico. Este mistério invisível no coração de toda criatura agora alcança significado cósmico ao afirmar sua conexão com o mistério invisível do âmago da criação. Este é o significado da fé. Ao mesmo tempo, é o significado da fusão da Psicologia e da Religião no pensamento de Kierkegaard. A pessoa verdadeiramente aberta, aquela que se desfez de sua couraça de caráter, da mentira vital do seu condicionamento cultural, está além do auxílio de qualquer mera ciência, de qualquer padrão meramente social de saúde. Ela está absolutamente só e tremendo à beira do esquecimento que é, ao mesmo tempo, o umbral da infinitude. Dar-lhe o novo apoio de que carece, a “coragem para renunciar ao pavor sem qualquer pavor... disso só a fé é capaz”, afirma Kierkegaard. Não que esta seja uma saída fácil para o homem, ou uma panacéia universal para a condição humana – Kierkegaard nunca é fácil. Ele fornece uma idéia extraordinariamente bela:
não que [a fé] aniquile o pavor, mas permanecendo sempre jovem, ela está continuamente se formando da convulsão mortal do pavor.
Por outras palavras, desde que o homem é um animal ambíguo nunca poderá abolir a angústia; o que pode fazer, em vez disso, é usar a angústia como eterna mola para crescer em novas dimensões de pensamento e confiança. A fé apresenta uma nova missão para a vida, a aventura da abertura para uma realidade multidimensional.
Podemos entender por que Kierkegaard só tinha de concluir seu grande estudo da angústia com as seguintes palavras que possuem o peso de um argumento evidente:
O verdadeiro autodidata [isto é, aquele que por si só transpõe a escola da angústia até a fé] é, exatamente no mesmo grau, um teodidata... Tão logo a psicologia tenha acabado com o pavor, nada mais tem a fazer senão entregá-lo à dogmática.Em Kierkegaard, psicologia e religião, filosofia e ciência, poesia e verdade fundem-se indistintamente reunidas nas aspirações da criatura
trecho de:
A Negação da Morte - de Ernest Becker (Cap.5 - O Psicanalista Kierkegaard - O Significado de Ser Homem - pág.109)

24.8.06

indi.ferença

A indiferença não é tolerada, prefere-se o falso interesse

9.8.06

ma.nada

todo dia, saio do trem e vejo a manada apressada subir escadas, preencher passarelas, varrer o que encontra na frente, atropelar-se nas balizas.
todo dia é igual, o mesmo caminho, o mesmo horário perdido, o mesmo tropel na mesma direção, talvez por isso esqueçam que pode haver alguém em situação diferente, alguém que tenta vir ao invés de ir!

8.8.06

memória

Chego agora aos campos e às vastas zonas da memória, onde repousam os tesouros das inumeráveis imagens de toda a espécie de coisas introduzidas pelas percepções; onde estão também depositadas todos os produtos do nosso pensamento, obtidos através da ampliação, redução ou qualquer outra alteração dos sentidos, e tudo aquilo que nos foi poupado e posto à parte ou que o esquecimento ainda não absorveu e sepultou. Quando estou lá dentro, evoco todas as imagens que quero. Algumas se apresentam no mesmo instante, outras fazem-se desejar por mais tempo, quase que são extraídas dos esconderijos mais secretos. Algumas precipitam-se em vagas, e enquanto procuro e desejo outras, dançam à minha frente com ar de quem diz: "não somos nós por acaso?", e afasto-as com a mão do espírito da face à recordação, até que aquela que procuro rompe a névoa e avança do segredo para o meu olhar; outras surge dóceis, em grupos ordenados, á medida que as procuro, as primeiras retiram-se perante as segundas e, retirando-se, vão recolocar-se onde estarão, prontas a vir de novo, quando eu quiser. Tudo isso acontece quando conto qualquer coisa da memória.
(Santo Agostinho apud Le Goff, 1966, p.41)

3.8.06

Mikhail Bakunin - A Ilusão do Sufrágio Universal

Os homens acreditavam que o estabelecimento do sufrágio universal garantia a liberdade dos povos. Mas infelizmente esta era uma grande ilusão e a compreensão da ilusão, em muitos lugares, levou à queda e à desmoralização do partido radical. Os radicais não queriam enganar o povo, pelo menos assim asseguram as obras liberais, mas neste caso eles próprios foram enganados. Eles estavam firmemente convencidos quando prometeram ao povo a liberdade através do sufrágio universal. Inspirados por essa convicção, eles puderam sublevar as massas e derrubar os governos aristocráticos estabelecidos. Hoje depois de aprender com a experiência, e com a política do poder, os radicais perderam a fé em si mesmos e em seus princípios derrotados e corruptos. Mas tudo parecia tão natural e tão simples: uma vez que os poderes legislativo e executivo emanavam diretamente de uma eleição popular, não se tornariam a pura expressão da vontade popular e não produziriam a liberdade e o bem estar entre a população?
Toda decepção com o sistema representativo está na ilusão de que um governo e uma legislação surgidos de uma eleição popular deve e pode representar a verdadeira vontade do povo. Instintiva e inevitavelmente, o povo espera duas coisas: a maior prosperidade possível combinada com a maior liberdade de movimento e de ação. Isto significa a melhor organização dos interesses econômicos populares, e a completa ausência de qualquer organização política ou de poder, já que toda organização política se destina à negação da liberdade. Estes são os desejos básicos do povo. Os instintos dos governantes, sejam legisladores ou executores das leis, são diametricamente opostos por estarem numa posição excepcional.
Por mais democráticos que sejam seus sentimentos e suas intenções, atingida uma certa elevação de posto, vêem a sociedade da mesma forma que um professor vê seus alunos, e entre o professor e os alunos não há igualdade. De um lado, há o sentimento de superioridade, inevitavelmente provocado pela posição de superioridade que decorre da superioridade do professor, exercite ele o poder legislativo ou executivo. Quem fala de poder político, fala de dominação. Quando existe dominação, uma grande parcela da sociedade é dominada e os que são dominados geralmente detestam os que dominam, enquanto estes não têm outra escolha, a não ser subjugar e oprimir aqueles que dominam. Esta é a eterna história do saber, desde que o poder surgiu no mundo. Isto é, o que também explica como e porque os democratas mais radicais, os rebeldes mais violentos se tornam os conservadores mais cautelosos assim que obtêm o poder. Tais retratações são geralmente consideradas atos de traição, mas isto é um erro. A causa principal é apenas a mudança de posição e, portanto, de perspectiva.
Na suíça, assim como em outros lugares, a classe governante é completamente diferente e separada da massa dos governados. Aqui, apesar da constituição política ser igualitária, é a burguesia que governa, e é o povo, operários e camponeses, que obedecem suas leis. O povo não tem tempo livre ou educação necessária para se ocupar do governo. Já que a burguesia tem ambos, ela tem de ato, se não por direito, privilégio exclusivo. Portanto, na Suíça, como em outros países a igualdade política é apenas uma ficção pueril, uma mentira.
Separada como está do povo, por circunstâncias sociais e econômicas, como pode a burguesia expressar, nas leis e no governo, os sentimentos, as idéias, e a vontade do povo? É possível, e a experiência diária prova isto. Na legislação e no governo, a burguesia é dirigida principalmente por seus próprios interesses e preconceitos, sem levar em conta os interesses do povo. É verdade que todos os nossos legisladores, assim como todos os membros dos governos cantonais são eleitos, direta ou indiretamente, pelo povo.
É verdade que, em dia de eleição, mesmo a burguesia mais orgulhosa, se tiver ambição política, deve curvar-se diante de sua Majestade, a Soberania Popular. Mas, terminada a eleição, o povo volta ao trabalho, e a burguesia, a seus lucrativos negócios e às intrigas políticas. Não se encontram e não se reconhecem mais. Como se pode esperar que o povo, oprimido pelo trabalho e ignorante da maioria dos problemas, supervisione as ações de seus representantes? Na realidade, o controle exercido pelos eleitores aos seus representantes eleitos é pura ficção, já que no sistema representativo, o controle popular é apenas uma garantia da liberdade do povo, é evidente que tal liberdade não é mais do que ficção.
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Henry David Thoreau - A Desobediência Civil

Aceito com entusiasmo o lema "O melhor governo é o que menos governa"; e gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Levado às últimas conseqüências, este lema significa o seguinte, no que também creio: "O melhor governo é o que não governa de modo algum"; e, quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que terão. O governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser inconveniente. As objeções que têm sido levantadas contra a existência de um exército permanente, numerosas e substantivas, e que merecem prevalecer, podem também, no fim das contas, servir para protestar contra um governo permanente. O exército permanente é apenas um braço do governo permanente. O próprio governo, que é simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua vontade, está igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo que o povo possa agir através dele.
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26.7.06

caminha.da

e então, sem motivo, ele começa a andar, segue até a esquina mais próxima, que na sua rua é bem longe, na esquina, decide seguir em frente, e o faz, anda por horas, concentrado, respirando, outra hora, pensativo, respirando, nova hora, seu rosto muda, respirando segue em frente, o tempo passa, não pisa mais o solo, cresce, se mistura à atmosfera, é parte dela, caminhar é fácil, leve, não existe impacto, só suavidade, não existe o tempo, ele se expande, não existe corpo, nem respiração, não há dentro ou fora, não existe caminho

21.7.06

filosofia clementina do penetral

O côisico, coisica: os cavalos cavalam, as árvores arvoram, os jumentos jumentam, as pedras pedram, os móveis movelam, as cadeiras cadeiram e o faráutico, machendo e feminando, é que consegue genter e farauticar! É assim que o túdico tudica e que o penetral penetrala - e esta, Quaderna, é a realidade fundamental!
[Romance d'A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta . Ariano Suassuna]

abertura

Encontrar algo que não tenha sido dito, escrito, pensado, é tão paradoxal, quanto a Procura